O dia amanhece e não consigo abrir os olhos. Eu sei que está calor porque é possível sentir a pele úmida, úmida de um suor quente e pegajoso. A janela está entreaberta, mas de nada adianta, pois não está ventando e a única coisa para que este vão serve é deixar entrar no quarto um feixe de luz que vem incidir justamente no meu rosto. Apesar disto tudo, não consigo abrir os olhos, não consigo levantar desta cama, não consigo me mover!!!
Mas, como eu posso estar assim?! Não lembro exatamente o que me aconteceu para estar num estado tão deplorável como este. E isto não é comum para mim, odeio perder controle dos meus atos, das minhas palavras, não gosto de me sentir vulnerável a ponto de realmente falar as coisas que eu penso e que eu acho, mesmo que elas estejam guardadas bem no fundo da minha mente, mesmo que sejam verdades. Mas parece-me que algo de errado aconteceu, pois já amanheceu faz tempo e eu não consegui abrir meus olhos ainda.
Sei que amanheceu faz tempo porque está muito quente. Tudo bem que estamos em março, mas mesmo assim, não costuma fazer tanto calor tão cedo nem eu costumo ficar tão encharcado. E também tem o fato que eu devo ter me deitado muito tarde, pois, até onde me lembro, devo ter chegado alta madrugada.
Até onde me lembro. Boa colocação esta. Este é o ponto principal, não me lembro de muita coisa não. Lembro de estar chegando animado, por parecer que a balada seria boa, que encontrei muitas pessoas bonitas e interessantes e que havia muita bebida. Este foi meu grande problema.
Este é o grande problema de você sair de casa cansado e estressado da semana de trabalho, com o corpo dolorido e a mente sobrecarregada; você quer, o mais rápido possível, esquecer todos estes problemas e poder relaxar.
'Oi, será que eu te conheço de algum lugar?!'
Certo, só que pelo jeito acabei relaxando demais. Tanto que agora não consigo abrir meus olhos e nem me mexer direito. Apenas viro de um lado para o outro o corpo, pois movimentos maiores
despenderiam muita energia deste corpo agora debilitado.
E como eu pude ficar assim!? Realmente não sei. Ta certo que a noite foi boa e que acabei bebendo demais, mas, ficar tão desgastado desta maneira?!
'Sabia que você é muito linda?! Qual o seu nome?!'
Não adianta lutar contra a natureza. O melhor a fazer é continuar deitado e esperar esta ressaca passar.
Ressaca. Verdade, e das fortes. A cabeça dói. Claro, é por isto que não consigo abrir os olhos, a claridade é grande demais, melhor mesmo ficar esperando.
'Adorei este seu cabelo vermelho. Eu tenho paixão por meninas de cabelo vermelho.'
Melhor tentar rememorar o ocorrido da última noite, ou última madrugada, o que seja!
A música era boa. Difícil eu ir num lugar onde toca música que eu goste. Os deuses da música realmente gostam de mim e me preparavam para uma grande noite, pois no momento que entrei no local, Chris Cornell raivosamente me dizia 'Go on and save yourself, and take it out on me'.
'Você realmente gosta deste tipo de música que está tocando?!'
Uma cerveja gelada me esperava sobre o balcão, servido por uma linda garota toda vestida de negro. Sorri e ela gentilmente retribuiu meu sorriso. Resolvi andar pelo ambiente. Estava quente, abafado. Muitas pessoas circulando por um lugar que realmente não era muito grande.
Nada disto importava. Sentei em um banquinho alto, próximo à pista de dança, de onde podia tranqüilamente observar o movimento de pessoas e ouvir a música sem ser incomodado.
'Não acredito!!! Eu também fui!!! O que você achou do show?!'
Jim Morrison melancolicamente cantava sobre sua 'Love Street' enquanto eu levantava para pegar mais uma cerveja. Retornei ao meu lugar, meu camarote, meu porto seguro, onde podia apreciar, imponente e intocável, o fluxo de pessoas.
Havia todo tipo de pessoas, ou melhor, todo o tipo de pessoas que você poderia encontrar num local que apenas toca rock n roll. E para mim era o que importava, pois era este o local onde eu me sentia bem.
'Eu também gosto desta música, mas eu prefiro o primeiro álbum deles.'
Garotas de preto ou com roupas extravagantes, ostentando seus cabelos coloridos, seus piercings, suas tatuagens. Rapazes igualmente produzidos, com cortes de cabelo diferentes e óculos grossos, de aro preto. Portando nas mãos copos de bebida, alguns com cigarros, indo de um lado para o outro, andando ao som da música.
Mais uma cerveja. Paro para olhar a lista de bebidas e resolvo variar um pouco. Peço um drink de absinto e soda, vamos ver se faz efeito agora.
'Já te disseram que você tem um sorriso lindo?!'
Deve ter sido aí que tudo começou. Não adianta, eu sou fraco mesmo. Deveria ter ficado só na cerveja mesmo, mas não, tinha que pegar uma dose de absinto?! Estou começando a entender o que ocorreu.
'Adorei esta flor de lótus, muito bem feita. Você tem outras?!'
Tomaram meu lugar. Acho melhor não circular com o copo por aí, pode derrubar em mim. Encosto na parede e continua a observar.
Nestes momentos que percebo que tenho uma alma um tanto voyeur. Satisfaço-me em ficar observando quem passa, tentando analisar cada um pela roupa, pela aparência, pelo modo de andar e se portar.
'Posso te fazer uma pergunta que pode soar um pouco indiscreta?!'
Deixo o copo vazio e pego mais uma cerveja, novamente com a linda garota. Mais um sorriso, mas uma retribuição.
Adentro pela primeira vez ao ambiente conhecido como 'pista de dança'. A pesada e maravilhosa linha de baixo de 'Aerials' faz com que eu acompanhe com a cabeça os movimentos da música.
Não é necessário saber dançar, basta deixar se levar pela música, deixar ela fluir...
'Olha, se você quiser eu vou embora ta?! Não quero ser inconveniente.'
Mais uma cerveja, antes uma rápida passagem pelo banheiro. Sinto que estou começando a ficar meio grogue. Animado, mas grogue.
Uma dose de vodka, mais uma cerveja.
'É que eu te achei linda...'
Nossa Senhora. A cabeça dói mais ainda só de lembrar. Como eu fui burro. Mas e quem disse que bêbado tem noção?!
Prometo que eu nunca mais vou beber na minha vida.
'...e não só isto, muito legal e interessante...'
Minha enésima cerveja, já estou andando meio torto, mas tudo bem, o lugar está ótimo e eu moro aqui perto mesmo, meu carro já sabe de cor o caminho para casa.
E nisto eu vi alguém que eu não tinha reparando antes. Como pude?!
Ela não deve ser muito alta, botas pretas até pouco abaixo do joelho, uma saia igualmente preta, proporcionalmente acima do joelho, uma blusinha branca, deixando perceber o contorno dos seus - belos - seios, um rosto que era uma mistura de angelical com pecador e, para completar, cabelos de um forte vermelho na altura dos seus ombros, onde podia perceber que havia uma tatuagem colorida, cuja não era possível ser identificada no momento.
'...estou adorando conversar com você...'
Não pode ser verdade o que estou vendo, deve ser apenas uma ilusão. Ela não pode existir de verdade. No exato momento em que ela coloca, suavemente, um copo de uma bebida vermelha em sua boa, meu velho companheiro de baladas, o senhor Ian McCulloch, sussurrou nos meus ouvidos 'Lips like sugar, sugar kisses'
Era o que eu precisava. Ele me mandou, eu fui, mesmo sabendo que alguma coisa não iria dar certo. Mas fui.
'...e amei mesmo te conhecer...'
Verdade, como pude me esquecer!!! Aquela linda garota de cabelos vermelhos. Fui realmente falar com ela - eu acho. Só podia estar bêbado, em sã consciência jamais teria coragem, o que um anjo como aquele poderia querer comigo?!
Ah, mas tenho certeza que tomei um fora, pois não consigo me lembrar de nada depois disto e eu já estava muito ruim. Como dói minha cabeça!!!
'...portanto...'
Aproximei-me, respirei fundo, segurei firmemente minha garrafa de cerveja, esperei ela retornar o copo na posição original e parei em frente dela.
Sorri.
'...posso te dar um beijo?!'
Minha cabeça!!! É isto mesmo!!! Como eu pude ser tão patético. É por isto que eu não gosto de beber.
Agora eu tenho certeza do que aconteceu, tomei um fora e resolvi voltar pra casa, antes que não conseguisse mais dirigir. Verdade. E outra coisa... será que ela existiu mesmo?! Acho que estou fantasiando. É verdade, acho que ela nem existe.
Não pode existir alguém assim, tão linda, com tão bom gosto musical e outros, tão perfeita. Eu tenho que parar com esta história, principalmente com isto de cabelo vermelho e tatuagem. Ela não existe!!!
Depois desta melhor abrir o olho e tomar uma boa ducha.
Levanto com muito esforço, ainda de olhos fechado. Espreguiço-me, as juntas estalam.
Estou vendo que hoje o dia vai ser pesado.
Melhor abrir o olho e observar no rádio relógio o horário. 12h32. Tarde... espera!!!
Na minha cama vejo, além da desarrumação de uma turbulenta noite de sono, um corpo alvo e lindo, precariamente coberto por um fino lençol branco, deixando transparecer sua nudez e, estando dormindo suavemente, um brilhante cabelo vermelho repousando sobre um travesseiro.
Fecho os olhos mais uma vez e decido ir tomar um banho.
Enquanto a água fria do chuveiro cai sobre meu corpo suado penso: 'não pode ser verdade!!! Não posso me apaixonar por um sonho, por alguém que não existe, isto já está indo longe demais.'
E nada que um banho frio não cure. Ainda bem.
posted by Hiran Eduardo Murbach #
9:42 AM