Contos

Wednesday, December 16, 2009

 
A fina e fria garoa que cai ao entardecer daquele dia de agosto seria o suficiente para afastar das ruas todas as pessoas de bom senso, mas não é isto que acontece. As ruas estão cheios de carros, rodando, quando estão, a uma velocidade que as pessoas que os acompanham pela calçada, com passos apressados, os deixam para trás. Todos querem sair de lá o mais rápido possível, chegarem logo aos seus lares, perto ou longe dali ou daqui, para deixarem para trás as intempéries climáticas que tanto os castigam.

Mas, aparentemente, nem todos tem para onde ir. Nem todos têm um teto, quatro paredes e algo que os aqueça e os alimentem. Alguns, esquecidos pela cidade e pelas pessoas que fazem a cidade pulsar, estão jogados nos seus cantos, como um incômodo que deve ser evitado para, assim, quem sabe, ser esquecido. Pessoas que não são pessoas, são coisas, como se fossem um saco de lixo ou um caixa de entulho esquecidas ao relento e que, algum dia alguém vai se tocar e levar embora, como se nunca tivessem existidos. Alguém, mas nunca a gente.

E um destes incômodos estava, neste momento, sentado próximo a esquina de duas ruas movimentadas e então, quase paradas. Os carros que lá passavam, com pressa para chegarem à algum lugar, mal notavam a pequena criatura. Nem quando ela, em um esforço que lhe parecia descomunal, se dirigia até eles suplicando por algum trocado, um pouco de comida ou qualquer outra coisa que lhe trouxesse algum alívio, mesmo que momentâneo.

Alívio é a palavra certa, pois satisfação e prazer eram sensações que ele nem mais se lembrava se tinha vivido algum dia. Provavelmente sim, em algum momento do seu passado remoto, mas se encontrava tão tão remoto que agora nem uma lembrança era mais, não mais restava nada em que ele pudesse de escorar para buscar algum sentimento. Não, sem mais sentimentos que não fosse tristeza e desânimo, frio e fome, cansaço e desespero.

Nem raiva ele conseguia mais. Estava cansado demais para sentir raiva das pessoas, da situação, ou mesmo dele. Já sentira muito, disto ele se lembrava. Da raiva, do ódio, do maldizer. Da irritação e das explosões furiosas. Mas não, nem isto mais restava no seu coração.

Coração? O que era isto? Se coração é um órgão que serve para bombear o sangue pelo teu corpo, através de pequenas veias e artérias, provavelmente ele ainda tinha, pois estava vivo e, sangrava, mas o coração que as pessoas costumam dizer ser o receptáculo das emoções, já havia desaparecido. Fora corroído pelos ácidos do teu estômago e depois descartado pelo seu sistema intestinal, muito tempo atrás. E quando isto aconteceu, fedeu muito. E ele ficou enjoado.

Sua aparência era de uma criança, mas ele não era uma. Já vivera muito para ser uma criança, mas mesmo assim parecia uma. Sua pele negra e seus olhos apagados eram cobertos apenas por um gorro, largo demais para sua cabeça e uma roupa esfarrapada e suja que, agora molhada, não servia para aquecer seu corpo mirrado. Para tal, ele usava uma velha coberta, companheira do dia e da noite, puída e com alguns rasgos.

O odor que ele exalava era forte, como se a somatória de chuva, poeira e fuligem o tivesse apodrecido. As pessoas que passavam perto dele prendiam a respiração, mas ele nem ligava. Não sentia nada. Nada. Acostumara com seu cheiro e o asco de outrem.
Algumas vezes, quando o sinal ficava vermelho, levantava-se trôpego, com dificuldades e, amparado por uma muleta, que também poderia ser chamada de um pedaço de madeira podre, movia-se para os carros, pedindo. Nos dias de calor, com as janelas abertas, era mais difícil das pessoas o ignorarem, então davam-lhe algumas moedas para se verem livres de tão incômoda presença, mas nos dias de frio e chuva, com os vidros fechado e insufilmados, ele passava despercebido.
Quatro carros, o sinal mutou para o verde e, apressados, os veículos se puseram a mover, mesmo que meio metro, um metro no máximo, e ele voltou para seu canto, sua casa. Movia-se lentamente, pois ter apenas uma perna tornava tudo um pouco mais difícil.

Sentou-se e colocou a mão no bolso de sua velha calça. Era todo o dinheiro que tinha conseguido hoje, R$ 2,23 em moedas pequenas e um botão que tinha sido dado por engano, que por algum motivo encontrava-se entre as moedas de algum carro. Com esse dinheiro ele poderia comprar um pão com manteiga e tomar um copo de leite, que seria seu café da tarde, sua janta, sua ceia e, provavelmente, seu café da manhã do dia seguinte.

Pegou sua coberta, uma mala velha que carregava todas as suas posses, e que não eram muitas senão alguns badulaques como um velho gorro vermelho e um cachimbo de madeira esculpido toscamente à mão e rumou para um decrépito bar que tinha ali perto, o único em que aceitava o seu dinheiro em troca de alguma coisa para comer, o único que não o punha para fora como se põem as ratazanas e as baratas que fogem do esgoto para invadir os estabelecimentos.

Pegou o pão e copo de leite quente, servido em um copo de plástico, pois o de vidro o atendente teria nojo de lavar depois e, na porta, ficou olhando para o vazio. Engana-se quem acha que ele ficou pensando na vida, pois nem isto ele conseguia mais. Olhar era uma maneira de dizer, pois suas pálpebras estava abertas, mas não se sabe se ele via alguma coisa. Honestamente, ele nem sabia porque vivia, deveria ser porque não estava morto, tão simples e óbvio assim, pois ambições e interesses não tinha mais. Enquanto teu corpo respirasse, iria continuar a viver, e apenas comia e dormia pois o instinto de sobrevivência é primitivo, como o é nos animais. É, quem sabe ele não fosse hoje nada mais do que um animal.

A noite caiu, a chuva cessou, mas com isto o frio se intensificou. Estava cansado demais para mendigar por mais alguns centavos, então se encolheu no seu canto, debaixo do toldo rasgado de onde um dia foi algum foi algum comércio, mas que hoje estava fechado faz tempo, como denunciavam as paredes descascadas e a porta pichada.
Estava quase pegando no sono quando percebeu um pequeno vulto passando por ele e parando. Ensonado, achou ser algum cachorro, gato ou outro animal da rua, mas não deu nenhuma atenção, pois já estava acostumado com isto. Só percebeu que não deveria ser isto quando a pequena criatura deixou alguma coisa a seu lado e desapareceu instantaneamente.

Apalpando, ainda com os olhos entreaberto, viu se tratar de uma folha de papel, dobrada em quatro. Curioso, virou-a na direção do poste de luz e, numa letra de menina, leu:

“O que você fez consigo?”

E o menino chorou. Como uma fábula nunca deveria chorar.

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