Contos

Monday, March 30, 2009

 
Lágrimas Sujas

Ana estava caminhando pela rua com mais duas amigas. Era um dia bonito, uma quarta-feira como outra qualquer, fazendo o seu caminho corriqueiro, saindo do escritório onde trabalhava e indo almoçar em qualquer um entre as dezenas de restaurantes que existiam na região. Todos os dias, ao cruzar a mesma praça, ela notava que havia diversos mendigos no local, mas eles nunca chamavam a sua atenção, pois na verdade tornaram parte de uma triste e fria rotina, onde a vida humana valia tanto quanto ou menos que a de um animal.

Sim, um animal, era como ela via aqueles pobres coitados. Não era por mal, era uma coisa meio que automática. Para ela, como para a quase totalidade das pessoas que passavam por lá, era impossível achar que debaixo daquela camada de roupas sujas e rasgadas, da pele estragada e do odor nauseante existia uma pessoa, que tivera pai e mãe, talvez uma esposa e filhos, um dia tivera um trabalho, possivelmente usara um terno, aparecera em fotografias com uma roupa limpa e um sorriso branco, já fora abraçada e já abraçou, já fora amada e já amou. Tal qual teu pai, teu irmão, teu namorado, teus amigos.

Era difícil entender o que levava uma pessoa àquelas condições, pois para ela estas pessoas nunca foram levadas àquilo, elas simplesmente eram assim, como se sempre tivessem sido, e então não tivessem direito de ser qualquer coisa diferente, como numa sociedade de castas ou num roteiro sádico de um Admirável Mundo Novo para o século XXI.

Desta forma era fácil passar por elas como se fossem invisíveis, ou apenas um saco de lixo que cheirava mal. Mas naquele dia, por algum motivo daqueles que não se explicam, Ana prestou atenção em um daqueles mendigos. Era um jovem, talvez um pouco mais velho do que ela, mas com a aparência sofrida que todos daqueles tem.

Tinha uma barba grande, mal aparada e cabelos compridos, na altura dos ombros, que possivelmente um dia foram muito bonitos, mas que agora apresentavam-se sujos e sebosos. Usava uma camiseta velha, preta, com alguns rasgos e muitas manchas de sujeira, uma calça jeans estragada e pés descalços. Ao seu lado, um saco de estopa com algumas coisas que deveriam ser seus únicos pertences e uma marmitex parcialmente comida. Estava sentado no chão, com as costas apoiadas em um canteiro de flores.

Mas, apesar disto, o que mais chamou a sua atenção foi o olhar dele. Naquela face suja, queimada de sol e marcada pela poluição,que provavelmente não via água há semanas, seus olhos, claros, mostravam uma tristeza como ela nunca tinha visto em nenhum momento da tua vida. Era difícil explicar o que aquele olhar representava, uma sensação de dor, de angústia, de sofrimento que ela não conseguia conceber que alguém pudesse sentir.

Porém, ao fixar seus olhos no dele, sentiu um frio na espinha, que percorreu todo teu corpo, causando-lhe um mal estar súbito. Só teve forças para balbuciar um nome:

- Gustavo?

Ele não ouviu, tuas amigas mal ouviram também, pois na verdade não perceberam que ela se ateve por um instante, parada no meio da praça.

- Ana, você está bem? Vamos almoçar.

Ana nem ligou para tuas amigas, aproximando-se do mendigo e falando desta vez em alto tom e diretamente para ele:

- Gustavo?

Ele levantou rapidamente o olhar, como se reconhecesse aquele nome, mas tão rápido como o abaixou novamente, ignorando-o por completo. Ana se aproximou e o chamou novamente, mas foi mais uma vez ignorada, ele manteve-se impassível.

Neste momento Ana lembrou-se de Gustavo. Até cerca de dois anos atrás era o seu melhor amigo, a pessoa mais incrível que ela já conhecera. Ele era alto, bonito, muitas meninas queriam ficar com ele e, sabendo disso, ele aproveitava da situação, e ela se divertia depois com as histórias que ele a contava. Não só isso, ele era divertido, inteligente e com um ótimo gosto para filmes, música e cinema, assuntos que ele dominava por completo. Além disso, escrevia muito bem, tinha escrito algumas ótimas histórias que nunca chegou a publicar, mas que todo o grupo de amigos adorava ler.

Falando em amigos, eles costumavam sempre sair juntos em um grande grupo, indo ou a shows, ou assistir filmes no cinema ou mesmo sentar num barzinho para beber uma cerveja e falar besteira. E Gustavo sempre era um dos mais divertidos e alegres.

Alegria esta que ela, e todos, achavam que era inerente a ele, pois raramente ele encontrava-se triste. Até que um dia, ele a ligou para conversar, combinando de se encontrarem em um bar que costumavam ir. Lá, ela o viu pela primeira vez chorar:

- Ana, eu não estou bem, e não é de hoje.Eu não estou agüentando mais a pressão... – e nisso ele a contou um monte coisas que ela nem imaginava que pudesse existir, como ele estava trabalhando há meses sem receber praticamente nada, apenas se afundando em dívidas, as cicatrizes mal fechadas do seu último relacionamento, os seus problemas familiares, com a separação dos seus pais e, pós, a perda de teu pai, de forma trágica, as pressões, os medos, as angústias.

E nisso ela se lembrou de onde ela conhecia aquele olhar, era o mesmo olhar que o Gustavo lhe dera, naquela tarde de abril, quase dois anos antes, onde, debaixo de lágrimas, disse que estava cansado e que não tinha mais forças. E ela se lembrou que já vira aquele olhar triste e úmido fora a última vez que vira o amigo, pois, depois daquele dia ele desaparecera.

Quando seu celular passara a estar sempre desligado, ela se assustara. Fora então até o prédio onde ele morava e perguntara ao porteiro dele, que não sabia de nada, apenas que seu carro estava na garagem e que ele não tivera estado lá nos últimos 10 dias. Como a conhecia, ela pegou as chaves e subiu para ver.

O apartamento estava intocado, todas as suas coisas, inclusive os livros que ele amava estavam no local. Assim como as suas roupas e seu laptop. Sobre a mesa, um calhamaço de cartas, entre elas muitas cobranças.

E ele desaparecera, como se nunca tivera existido. Alguns dias depois a irmã dele a ligou, pedindo que fossem até o apartamento pegar as coisas dele para poderem entregar o mesmo e, num espaço entre a sua crise de choro, dissera que ninguém na família tinha notícias dele.

O tempo tinha passado, mas ela não passava uma semana sem pensar nele, nem que fosse por um mísero momento. Mas esse mesmo tempo havia esvaído com todas as esperanças de encontrá-lo. Ela sonhava em lhe dar um abraço, em conversar com ele novamente e, todas as vezes que isso acontecia, ela acordava chorando.

- Gustavo? Eu sei que é você. Fala comigo. – E nisso ele se arrastou para o lado, como um animal acuado em um conto, encolhendo-se de medo do seu predador.

Ele não falava nada, apenas levantava aquele olhar triste, que ela tinha a mais absoluta certeza que pertencia ao seu amigo, mas que naquele momento parecia fitar uma completa desconhecida. E balançava apressadamente a cabeça, num gesto negativo, como se negasse ser ele esse tal de Gustavo.

Ana se abaixou, se aproximando daquela ser humano maltrapilho e fedorento, o que naquele momento de nada lhe importava, pois ela já o havia abraçado diversas vezes, e debaixo daquela camada de sujeira estava aquele que ela ainda considerava teu melhor amigo. E para desespero de tuas amigas, ela esticou o braço e tocou o ombro dele.

Parecia que ele havia levado um choque, pois se levantou imediatamente, revelando pela primeira vez a sua voz, a mesma que ela já ouvira por diversas vezes, apesar de mais rouca e amarga:

- Eu não te conheço, dona. Eu não fiz nada pra você, me deixa quieto.

- Como não Gustavo? Eu sou a Ana, é óbvio que você se lembra de mim, nós somos amigos! O que aconteceu com você? Por onde você andou?

Ele pegou então sua pequena sacola, e olhando diretamente nos olhos dela disse: - Eu não conheço esse Gustavo, Dona. – e, abaixando a cabeça, virou-se e se pôs a andar, se afastando dela.

- Gustavo, por favor, fala comigo. Gustavo... – ela fez menção de acompanhá-lo, mas ele, caminhando, repetiu:

- Eu não conheço esse tal de Gustavo, me deixa em paz, eu não te fiz nada. – e, virando a cabeça para trás, ela pôde ver uma lágrima escorrendo naquele rosto sujo, e uma voz embargada a disse: - O Gustavo morreu, dona.

Nesse momento, ela parou, sem forças para acompanhar aquele maltrapilho, que desapareceu na multidão, no meio dos outros mendigos, porém sem conseguir segurar as lágrimas.

 
SORRISOS AMARELOS E OLHOS VERMELHOS

Eu sinto saudades de outros tempos. Não, eu não sou daqueles saudosistas que ficam dizendo que no tempo deles as coisas era melhores, que aquilo que era vida, entre outras baboseiras. Primeiro porque eu ainda tenho pouco mais de trinta anos, e a tal minha época é agora e o máximo de nostalgia que poderia sentir são de coisas da minha infância e adolescência que, sinceramente, sinto muito pouco. Mas, principalmente, eu sinto falta é da minha vida, que eu costumava ter, e que não tenho mais, faz tempo.

Certo, nunca tive uma vida incrível e maravilhosa, daquelas dignas de serem retratadas no cinema ou, ao menos, numa biografia literária, mas, pelo menos a minha vida era tranquila, dentro dos altos e baixos que todos costumam ter. Os bons dias intercalavam com os maus e tudo ia sendo encaminhado.

Mas, pelo menos eu dormia a noite, não precisava me entupir de remédios ou de bebida pra relaxar e esquecer os problemas do dia a dia, não ficava o tempo todo esperando o pior, a cada toque de telefone ou campainha, ou a cada email recebido, não precisava ficar me esgueirando pelos lugares, com medo ou vergonha de encontrar algumas pessoas, não precisava ficar pensando o tempo inteiro em como eu iria fazer para me livrar dos problemas, ou pelo menos postergá-los para algum dia o qual eu também não os conseguiria resolvê-los.

Não precisava encarar olhares de raiva e pena, não precisava manter um sorriso no rosto o tempo todo, como se nada me afetasse ou me afligisse, ao tempo que minhas entranhas se contorciam de ódio e fúria, não me achava incompetente, inútil e fracassado, onde pelo menos boa parte das coisas que eu fazia davam certo, não tudo dava errado, como é hoje.

Os dias eram azuis, e não apenas cinza. Os percalços existiam para serem superados e, depois, a satisfação do resultado podia ser comemorado sem o gosto amargo da instantaneidade, da certeza que a guerra nunca seria vencida, nem ao menos a batalha. Os sorrisos não eram amarelos nem os olhos eram vermelhos.

Cansei. É preciso dar um basta nisto. Tentei de diversas formas, mas fracassei em todas, só que agora tenho certeza que não fracassarei. Estou a um passo de resolver todos os meus problemas. Literalmente.

Porém, sinto que estarei apenas postergando mais uma vez um problema. Não ligo. Estou cansado. Desisti de esconder minhas dores, de parecer forte. Porque eu não sou forte, sou um covarde. Mas estou a um passo de resolver isso e postergar mais uma vez. Literalmente.

Sempre ouvi falar que não há bem que não termine nem mal que pra sempre perdure, ou alguma variação de palavras com o mesmo significado, mas percebi que algumas vezes nós precisamos dar o primeiro passo para esse mal acabar. Literalmente.

E resolvi dá-lo. O primeiro passo. O último passo. O único passo. Em direção ao nada, mas pelo menos a um nada mais confortável que aquele que estou vivendo. Pelo menos eu espero, pois agora é tarde. Não tem mais volta. O último passo foi dado. Literalmente.

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